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A canção de Catulo da Paixão Cearense e Anacleto de Medeiros inspirou o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974) a intitular sua última peça: "Rasga Coração". Um texto censurado, proibido de ser encenado, um texto-testamento quase impossibilitado de ser escrito. O segundo ato teve de ser ditado para mãe do dramaturgo – Vianna Filho não conseguia mais escrever na cama do hospital, dias anteriores a sua morte. Um último capÃtulo de vida, seu próprio coração rasgado.
Oduvaldo Vianna Filho é reconhecido como um dos maiores dramaturgos do moderno teatro brasileiro. Durante uma vida tão curta, Vianna Filho (ou "Vianinha" como é mais conhecido) foi ator, diretor, roteirista de TV, dramaturgo e também produtor.
Mas foi como autor de teatro que Vianinha afirmou seu nome. Suas peças – como um seguidor de Bretch – investigam criticamente a história social do Brasil, refletindo de forma coerente as transformações polÃticas e sociais que Vianinha mesmo procurou e lutou a favor. Para ele, o teatro deveria ser dirigido a seu próprio tempo, para o público do "aqui e agora". Teatro como instrumento de intervenção em determinado momento polÃtico e social. Deste modo, Vianinha encontrou seu lugar de ponto de referência com uma obra que traz conflitos e ideologias do perÃodo da ditadura brasileira, aliada ao domÃnio impressionante da escrita dramática.
O dramaturgo teve que assistir a alguns dos seus grandes textos censurados pelo governo militar, como suas duas últimas peças: "Rasga coração" é uma dessas. Sua primeira encenação ocorreu em 1979, com a direção de José Renato e com Raul Cortez, Ary Fontoura e Lucélia Santos no elenco.
Agora "Rasga Coração" está sendo encenada no Rio de Janeiro,dirigida por Dudu Sandroni. A peça traz Zécarlos Machado, como Maguary Pistolão, Kelzy Ecard como Nena, Xando Graça, Pedro Rocha, Expedito Barreira, Alexandre Mofati, Alexandre Dacosta, Miriam Roia e Tiago D'Avila.
Através da história de Manguary Pistolão, "Rasga Coração" revê os momentos históricos importantes da recente história brasileira dentre os anos de 1930 a 1970. Com uma afiada e poética escrita dramática, Vianna Filho trabalha com duas dimensões de tempo – passado e presente – como nos dizendo que o presente não pode ser entendido sem olharmos atentamente o passado, ou como ele mesmo escreve no prefácio da peça: " "Rasga Coração" é uma homenagem à quele lutador anônimo (...) O revolucionário nem sempre é novo e o novo nem sempre revolucionário". Premonitórias palavras...
Esse importante tema na obra de Vianna Filho parece não surtir nenhum efeito nas novas gerações, cujos projetos individuais superam qualquer busca coletiva. Na obra de Vianinha, diz Dudu Sandroni, "a grande revolução se contrapõe ao projeto individual dos protagonistas que acabam encurralados por optar por um certo padrão de vida que, em tese, negaria a Revolução. É assim em "Moço em Estado de SÃtio", "Mão na Luva", "Corpo a Corpo". Só em "Rasga Coração", o personagem central Manguary Pistolão, vai fazer a defesa da " pequena revolução" feita no dia-a-dia. Como sua última peça, peça-testamento, e principalmente, escrita entre 1972 e 1974, anos em que a ditadura militar estava no auge, isso é uma defesa quase de uma estratégia polÃtica: como sobreviver fazendo polÃtica em pleno regime militar! Na verdade, a polÃtica se faz de todas as formas, no dia- a-dia, mas também na, digamos, grande polÃtica, por mais que ela, em tempos de mensalão e mensalinho, nos enjoe, cause náuseas, ela também é um caminho do qual não podemos abrir mão, principalmente nesses tempos democráticos que o nosso Vianinha se orgulharia muito em ver!"
"Rasga Coração" trouxe Dudu Sandroni novamente ao palco como diretor de teatro adulto depois de alguns anos trabalhando com produção e teatro infantil. E por que Vianinha? Dudu explica: "Como artista, me interessa a poética de sua dramaturgia. Ele é um craque na escrita dramatúrgica, um poeta da cena. Poderia escrever sobre qualquer coisa, não necessariamente polÃtica, como de fato escreveu, e ainda assim ser um autor maior".
Dudu também revela sua paixão de longa data pelo dramaturgo:
"Minha paixão pelo Vianna vem de muito tempo. Antes mesmo de saber que ele era ele, meu programa predileto era "A Grande FamÃlia" e alguns "Caso Especial" também me marcaram muito na época. Em 1979, o impacto da brilhante montagem de "Rasga Coração" do Zé Renato, depois, em 1986, "Mão na Luva", dirigido pelo Aderbal Freire Filho, com o Marcos Nanini e a Juliana Carneiro da Cunha, demolidores. No dia em que vi "Mão na Luva", ao lado da minha querida amiga Helena Varvaki, fizemos uma promessa: que dali a 10 anos nós mesmos montarÃamos a peça. A promessa foi finalmente cumprida em 1998, 12 anos depois, e essa foi minha primeira direção de um texto do Vianna, e praticamente minha última direção em teatro dito adulto".
Dudu Sandroni respondeu algumas perguntas sobre seu trabalho em "Rasga Coração", e também sobre sua revolução pessoal e especial, dentre outros assuntos.
Quais os outros aspectos desse texto que lhe dizem algo como artista que você ainda não encontrou em outra obra?
Em "Rasga Coração" , Vianinha trabalha tempos e espaços com a maior liberdade, como em "Mão na Luva". Em um momento os personagens estão na praia de Copacabana em 1917, em seguida estão dentro de um apartamento dessa mesma Copacabana em 1972. Um personagem de 1930 contracena com o mesmo Manguary Pistolão que por sua vez está contracenando com seu filho em 1972! É uma liberdade aparentemente confusa e difÃcil, mas quando nós colocamos isso em cena e deixamos a contracenação fluir, é de uma clareza e de uma poesia estonteantes!
Qual é a sua pequena revolução? É o teatro?
Minha pequena revolução, nesse momento, é educar meu filho, Pedro, de 4 anos. É ser um bom pai. Tentar preparar o Pedro para ser um bom homem. Para isso, tentar melhorar, ser feliz, para ser um bom exemplo. O teatro é onde sou artista, poeta. Não quero ficar taxado como diretor de teatro polÃtico. Eu quero fazer o que é bom e o que fale por si. Há também o meu lado polÃtico, de uma pessoa que se preocupa com as questões sociais. Isso em mim sempre foi muito presente, desde a época de estudante, participando do movimento estudantil, luta pela anistia, eleições diretas, e todas as lutas democráticas que marcaram o fim do regime militar. É claro que essa tendência da vida me leva a escolher peças nas quais a questão polÃtica esteja presente. Mas essa não é a minha questão principal no teatro. Repito: se "Rasga Coração" não fosse um texto maravilhoso eu não montaria só por que ele é polÃtico!
Vianinha é considerado, por vezes, um autor "datado". Como um grande autor e um grande texto podem ser datados? Como você pensa isso?
Uma das minhas maiores alegrias nessa temporada excepcional que estamos tendo com o" Rasga Coração" é a de poder botar abaixo essa idéia de que o Vianna é datado. As pessoas ficam maravilhadas pela qualidade do texto. Mesmo aqueles que viram a primeira montagem ficam abismados:-- Eu não lembrava que era assim! É claro, a primeira montagem, em 1979, estava comprometida pela morte do Vianna, pelos anos que a peça ficou censurada, pelo que significava naquele momento, ano da anistia, peça liberada pela censura, as forças democráticas cada vez mais ganhando espaços, os últimos suspiros da ditadura, enfim... Ali, sob tais condições, o texto realmente ficava em segundo plano, na cabeça das pessoas. Por isso, no fundo, elas achavam que ele não era bom, que era panfletário. Mas o caso é que quase ninguém se preocupou em ler a segunda linha da peça. Se lessem viriam que a peça é uma grande obra! Então estou orgulhoso de poder estar mostrando para as pessoas um autor novo: o Vianinha! Acho que agora vai haver uma retomada de seus textos, já sei de pelo menos duas montagens em andamento, e eu mesmo estou querendo mais uma. E esse re-encontro com um autor tão genial vai ser muito bom para o teatro brasileiro!
Qual o grande legado de Vianinha para o teatro brasileiro?
O grande dramaturgo que ele é. O exemplo do artista que soube dialogar com o seu tempo e com o futuro.
Você esteve afastado da direção de teatro. Quais foram seus trabalhos nesse perÃodo?
Por 9 anos fiquei meio desanimado com o enorme trabalho para cada nova montagem, a falta de recursos, apoio, etc... Então fiquei trabalhando com projetos mais institucionais – espetáculos para crianças no Centro Cultural Calouste Gulbenkian, da Prefeitura do Rio; uma rápida passagem pelo governo do estado do Rio, como assessor de artes cênicas durante 11 meses; coordenador de produção de óperas no Theatro Municipal, foram três, e espetáculos com o Aderbal Freire-Filho – "A Prova", como assistente de direção; e "O Que Diz Molero", como diretor assistente e produtor. Enfim, como eu digo no programa da peça "costurando para fora..." Só há uns dois anos, produzindo para minha companheira, a atriz Kelzy Ecard, e ao mesmo tempo vendo a luta dela para se produzir, para ir em frente, e por outro lado vendo que se abriam novas possibilidades de patrocÃnio estatal: o Myrian Muniz da Funarte; o Fate da Prefeitura, enfim, as coisas pareciam estar melhorando; é que me veio a vontade de "começar de novo". Um dia conversando com um amigo sobre teatro, ele falou: - A melhor peça a que eu já assisti na vida foi "Rasga Coração"! Naquele momento as fichas cairam, e o "Rasga Coração" virou o meu projeto.
Desde que você iniciou sua carreira, é esta a época mais difÃcil para o teatro?
Infelizmente acho que sim. Desde o governo Collor o Ministério da Cultura não conseguiu ainda esboçar uma polÃtica para o teatro. Estamos entregues à lei Rouanet e praticamente sós. Em 2006, houve o prêmio Myriam Muniz, que foi um oásis para a produção. O "Rasga Coração" é patrocinado por esse prêmio. Mas ainda é muito pouco, e só bate na tecla da produção do espetáculo. É preciso uma polÃtica bem mais ampla para que o teatro volte a ter o tônus que tinha na década de 80, 70, 60. O ministro Gill está fazendo um ministério brilhante em vários setores da cultura: museus, patrimônio imaterial, a própria re-estruturação do MINC, cinema, mas em relação ao teatro e as artes cênicas em geral, os primeiros quatro anos de governo foram lamentáveis. Na prefeitura do Rio e no Governo do Estado, os últimos anos foram péssimos em todos os nÃveis. Na verdade, se discute muito sobre o teatro, mas ninguém consegue ter uma proposta de uma polÃtica mais ampla.
Você disse no programa da peça que agradecia a sua esposa Kelzy por estar de novo produzindo os seus próprios projetos. Então, o que vem por a�
"Rasga Coração", "Rasga Coração" e depois "Rasga Coração". Ainda estou embebido de "Rasga Coração", a temporada está sendo maravilhosa, uma festa do teatro!
Como é trabalhar em famÃlia?
No trabalho, somos profissionais. Nesse trabalho levamos isso ao extremo, quase não conversávamos sobre o trabalho em casa. Tudo era no ensaio. Isso fez muito bem aos nossos trabalhos, eu como diretor, Kelzy como atriz, pois é preciso ter um tempo para os delÃrios pós-ensaio, é preciso ficar sozinho, refletir, relaxar, guardar a energia. No "Rasga Coração" eu também tive a minha irmã, Paula Sandroni, como diretora assistente, e o procedimento foi o mesmo. Já trabalhei com outra irmã, Luciana Sandroni, autora de literatura infanto-juvenil, adaptando para teatro alguns de seus livros, e com Clara Sandroni, cantora, outra irmã, dirigindo seus shows. E também com minha mãe, Laura Sandroni, cantora também de um grupo chamado "Cantores do Chuveiro", onde eu faço direção de cena. Não tenho o menor problema em trabalhar em famÃlia, principalmente quando a famÃlia reúne tanta gente cheia de talento! É só não levar trabalho para casa, literalmente!
Qual o futuro de Rasga Coração agora?
A produção teatral continua difÃcil e ainda não temos nada fechado para continuidade da temporada, mas eu tenho certeza de que as coisas vão acontecer e que nosso espetáculo, tão querido por toda a equipe, pela classe teatral e pelo público, vai ainda rodar muito por ai! Estamos trabalhando para isso.
Peças de Oduvaldo Vianna Filho Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come (1966) Mão na Luva (1966) Papa Highirte (1968) A longa noite de cristal (1971) Corpo a corpo (1971) Em famÃlia (1972) Allegro desbum (1973) Rasga Coração (1974)
Photos by Luiz Henrique Sá
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